Sinestesia
la luna - 23jul002
Tivera sempre uma vida sinestésica.
Era sinestésica a forma
de entender a vida.
A infância fora visual, da adolescência recordava
cheiros, mas a juventude... Ah, a juventude fora o crescente das sensações, o mergulho no entender pelo sentir, aspirar, sorver,
enxergar!
Havia aquela colega da qual não conseguia lembrar o nome,porque tinha cara de buldogue, aquela outra, de passarinho, o professor, que parecia gravura de Jesus menino e outro que lhe
lembrava um contador, mas aquele - o Lord inglês - Ah, aquele tinha um mistério que não se podia alcançar.
Nunca havia imaginado que o mar pudesse ser retido em um par de íris, que o céu ficasse preso, refém mesmo de um olhar! Mas teve
esta absoluta e extasiante certeza naquela manhã fria e preguiçosa e carregou este conhecimento por toda a vida, sem jamais voltar a
presenciar o fato, a não ser quando avistava o tal moço que nos dias frios usava um pulôver branco.
Uma brancura de neve, uma alvura de ferir os olhos, tão demasiadamente branco que forçoso era erguer o olhar e descansá-lo na
imensidão azul-esverdeada que pairava inconteste acima do agasalho. E aquela duas tranças simétricas,paralelas, verticais? Pareciam duas
pontes, colunas que ligavam a imensidão de um céu marítimo à terra firme, ao chão. E se por acaso o pensamento voava em desvario, podia se ter certeza que do pulôver elas fugiam e enlaçavam quem as olhava,afogando,submergindo.
E as tardes eram rosa. E o tom pela noite se estendia e o céu de estrelas bordadas cancelava qualquer prenúncio de dia.
E isto acontecia sempre que uns olhos de fim de tarde sua cabeça recostavam
naquela alvura macia.
Olhos de fim de tarde, cabelos de sedosos fios, eram pequenas manchas de mel na alvura do frio, e sobre aquela imensidão do celeste
mar, fulvos raios luziam.
Mas o vento soprava sempre, carregando as folhas, secando as roupas, trocando as cores da vida. E o pulôver estendido no varal,
dobrado no banco das lembranças, ia esgarçando os fios.
A roda do tempo girava e se sucediam os dias, as imensidões ficaram turvas mas não perderam o desafio. O fulvo tornou-se gris e
outro, não Aznavour, cantava "She", mas o coração persistia e ainda
batia no compasso "He".
Toda a tempestade tem bonança e a tarde ainda incendeia.
A imensidão verde-azulada de estrela ainda ponteia quando os ventos da lembrança sopram as areias e duas tranças de um níveo pulôver
convidam para a contradança. Esperanças? talvez!
7 de out. de 2005
10set002
Os dias tem começado estranhamente frios. Nuvens
repletas de chuva guardada passeiam pelo céu matinal
enquanto o sol tímido titubeia em sair.
Penso que inadvertidamente a primavera esqueceu-
se de voltar. Quem sabe trocou de turno com o inverno???
O Flamboyant a minha frente oferece as derradeiras
flores da ultima florada e nos galhos nus, brotos
indecisos começam a aparecer.
Um vento frio e cortante tem varrido a rua ,
todos os dias pela manhã. Enquanto cruzo as calçadas,
observo os jovens que passam para a escola, as mães -
excessivamente zelosas - no cumprimento do diário banho
de sol de seus bebes, os trabalhadores chegando para a
faina costumeira...Todos expressam nas roupas e nos
rostos a falta de calor que a ausência do sol nos
traz...Alguns corajosos, ou talvez preguiçosos de
carregar, passam sem agasalho!
Na padaria, homens sentados esperam o café da
manhã. Média fumegante e pão quente. Sanduíche de
esperanças coalhado nos olhares perdidos que vagueiam
pelas ruas.
Raios tímidos, de um sol mais tímido ainda,
brincam de aparecer entre nuvens... Os pardais cantam
docemente como a incentivar o surgimento do calor
matinal.
O frio corta seco, a pele , a alma.
Uma solidão pungente , feita de concreto , aço e
arvores nuas habita meus olhos!
Cadê a primavera? Não voltará jamais !?
Será???
28 out 2002
Belo está meu pais
De vermelho enlaçado
Nossos corações
Em bandeiras desfraldadas
Vermelho sangue brasil,
Nas terras, pelos irmãos derramado
Vermelha terra do solo
Vermelho é o meu cerrado
Vermelha a aurora nasce
O sol ferindo a barra
Vermelha esperança
O albor da estrela dalva
Vermelho sol poente
Quando a noite se adentra
E em paixão morre o sol,
No ocaso, lentamente
Vermelho da esperança
Do meu sangue latejante
A nação se agigantando
O medo não sobrepujou a esperança!
5 de out. de 2005
15 de set. de 2005
O inverno partira antecipadamente, antes que chegasse a primavera, deixando no ar um calor que sufocava o corpo, oprimindo a alma.
Havia um silêncio de espera por toda a natureza embora o céu, mais afoito que os demais integrantes da mãe, já apresentasse o seu espetáculo de final de tarde.
Eram os pores-de-sol que ainda a consolavam com sua beleza exuberante e sua luz que de repente invadia todos os ambientes plenificando-os com seus tons de dourado e sua súbita sensação de alegria.
Havia sido um dia especialmente dificil em que nuvens espessas se acomodavam nos píncaros do espírito, denunciando a proximidade de uma grande tempestade. Problemas e mais problemas, um emaranhado deles e aquela vontade já quase esquecida de sair correndo que voltava insistente. Um cansaço enorme, como se arrastasse o peso do mundo, havia se instalado em seu corpo e atravessara o pátio do dia como quem escorrega, lentamente...Repentinamente aquela luz esfusiante tomou conta de todo o ambiente instalando um dia de verão em plena entrada da noite...A vidraça brilhou refletindo o astro-rei nas colunas de ferro e deixando entre-ver reflexos púrpura no céu distante.
Tudo, absolutamente tudo, tomou outro rumo, outra cor. Instalou-se, mais uma vez, a vida que espantou o torpor para longe.
Após este carinho, esta manifestação de esperanças, o sol escorregou pela linha do horizonte deixando implicita a promessa de voltar.
A noite com seus faróis instalou-se lentamente preenchendo o ar com um frescor característico e o aroma do lírio noturno assenhorou-se do ar!
20 de ago. de 2005
03/08/005
Estava uma manhã agradável e resolvi voltar para casa por dentro do Campus. Na verdade resolvi passear, fazer uma caminhada espichando olhos curiosos pela população universitária que me rodeia e que o correr dos dias não me permite olhar.
No final do meu caminho, saí do bloco 3, estava o bloco 10 onde estudam os calouros. Isto! Exatamente isto: na minha faculdade o bloco 10 é o bloco da calorada, onde todos começamos e de onde partimos cheios de saudades, prometendo voltar a cada recreio, no segundo semestre para o bloco específico do curso ao qual nos vinculamos.
Hoje foi dia de trote e os sorrisos alegres e as caras pintadas tiveram o poder de me transportar nas asas do tempo... Na verdade nem tanto tempo assim se contarmos as folhas do calendário,mas uma infinidade se consultada a memória das emoções e apenas um salto segundo o pensamento.
Estou no décimo semestre! Há exatos cinco anos atrás estava como estes meninos, sorrindo perdida diante de um tempo tão vasto que nem conseguia imaginar e neste momento, a beira de colar grau nem me dei conta de que o tempo passou rapidamente.
Começo a ver o Campus como a um amigo que vai partir. Não vai morrer mas se mudará de cidade e já não será tão fácil vê-lo.Sinto saudades dos prestadores de serviços, obreiros anônimos que nos propiciaram salas limpas, pátios varridos; dos fiscais de pátio,muitos dos quais se tornaram amistosos e dispo
14 de jul. de 2005
Desce pela varanda
Solitária orquídea rosa
Esconde-a a era macia
Reveste os pilares de estio
Aos distraídos olhares passantes
Esconde-a a paisagem exuberante
Aos olhares curiosos
Mostra sua intimidade sinuosa
cobiçosos ousam alcançar-lhe a flor
Alta altiva esconde-se o mimo
Ataviada de atrativos
Cheiro sutil embriagante
Prende o distraído viajante
Que nem atenta ao laço
Lânguida, entregue ao mormaço
Balança triqueira o vento
Que sutil, neste momento
Assanha-lhe as pétalas delicadas...
como a roxa terra do serrado
como seu chão de securas cortado
na imensa aridez do dia
Tenho uma alma que chora calada
como a terra seca encharcada
como árvores retorcidas ao céu
pedem clemência crescendoéu
E ao reverso de toda probabilidade
floresce o ipê sem humidade
brotam flores do solo ressequido
a vida abunda sem razoabilidade
Sigo na persistência de viver
aprendendo com os vegetais sobreviver
sou aguerrida como as cascas do serrado
a vida é desafio a ser enfrentado
Leio com olhos da emoção
a lua desenha sonhos nos vazios do céu
vejo as imagens que cria
e pinta no calçadão
Entre um olhar e outro também
sinto o roçar do vento noturno
o sopro do pensamento
pura poesia a espreitar-me afoi
e alma anda sozinha
vaga no breu da noite
silencio e frio
fogo e faca afiada
cortando a pele da alma
em nacos de vazios!
12 de jul. de 2005
Veranico
la luna- 11fev005
Era um típico final de tarde de verão!
Pessoas se espalhavam pelas varandas, a aproveitar a brisa leve que chegava prenunciando a noite; crianças corriam pelos gramados, lotavam as calçadas em uma azáfama despretensiosa.
Subitamente o vento invadiu a cidade, despenteando os longos cabelos da moça que subia a rua, espalhando os papéis nos quais, atencioso, o rapaz anotava pensamentos, sacudindo a saia da criança no balanço... As pessoas correram procurando abrigo, as luzes do café se acenderam e lá fora o sol escondeu-se entre espessas nuvens. Ficou escuro enquanto uma forte chuva lavava as ruas e tamborilava nos telhados uma ópera de Verdi.
Os relógios pararam os ponteiros, como se o tempo houvesse sido suspenso, enquanto um clima de magia enchia o ar. Dizer-se-ia que todos eram novamente crianças à espera de que chegasse a sempre tão distante hora de abrir os presentes de Natal.
Assim, tão de súbito como chegou, o vento partiu, a chuva cessou e as pessoas voltaram às sacadas. O poeta arrumou sua farta cabeleira branca, passando a mão pela barba espessa e longa como se tivesse nos dedos pentes encantados; os freqüentadores do café às varandas; a moça sentou-se no pátio, sacou um cigarro e tirou uma longa espiral de fumaça; as crianças voltaram às calçadas e os relógios à sua normalidade.
As luzes se apagaram enquanto lá fora o sol voltou a brilhar como se já não fosse hora de ser noite. Tudo voltou ao local onde se havia interrompido e a vida... Bem, a vida voltou ao seu curso, impassível como uma criança dormindo!
O Istmo
la luna – 23 set 003
Da janela avistava o braço do mar em sua elegante curva. Tinha ao meio dia uma cor azul celeste ponteada de manchas negras, indícios dos locais mais fundos — haviam lhe explicado — que a esta hora era quase cinza. O sol mergulhava no horizonte tingindo o céu de um vermelho afogueado.
Os veleiros voltavam com suas velas içadas, abertas ao sopro do vento de fim de tarde que lhe espalhava o cabelo ao filtrar-se pelos arabescos portugueses que guarneciam a janela.
Havia um quê de melancolia na elegância daquele istmo. Um algo que se perdera sem que se soubesse o que era e que o cheiro da maresia e o canto dos pescadores acentuava.
Aprazia-lhe ficar ali, no balcão, a olhar a enseada nestas horas. Costumava pensar, coisas de menina, como se sentiria aquele braço de terra tão longe do continente, esticado ente a água doce de um lado e a imensidão salgada do outro e sua mente viajava para além oceano onde diziam que existiam terras de homens negros como a noite e pardos como a tarde e de onde vieram seus avós e sua ama, cujos cabelos cheiravam a erva recém cortada.
O sol ia tingindo o céu de uma vermelhidão aflita como se entendesse a angustia que lhe pesava a alma, como se fosse solidário à imensa solidão que sentia e que era tão grande quanto o azul que se espalhava a sua frente.
Sentir-se-ia assim aquele braço de terra tão longe do continente? Que parte da terra firme lhe poderia entender a sensação de não pertencer nem à terra e nem à água? A solidão de não se fazer entender, ouvir, conhecer...
Tentara falar sobre estes pensamentos com o comandante D. Fernando , seu marido e dono perante a lei dos homens e fiel depositário de sua alma diante da lei de Deus. Ele ficara apreensivo. Estaria doente? Chamou o médico que pressuroso lhe receitou chá de flor de laranjeira. Incômodos do calor, dissera, normal nas senhoras nestas épocas primaveris.
Conversara com o pároco que lhe parecera suscetível ao entendimento, conhecedor que parecia ser da alma humana. Ralhou com ela. Como podia assim maldizer a benevolência do Senhor Deus que lhe dera um marido dedicado, uma casa farta, pais nobres, vida de senhorinha e filhos, logo três, da melhor espécie!?
Explicara a ela que não havia com que se preocupar. As meninas eram moçoilas belas, de pele clara e cabelos que mais pareciam raios de sol. As irmãs do convento da província as elogiavam fartamente e a posição de D. Fernando garantia a elas um bom casamento. O rapazinho se encaminhava bem e o pai muito lhe elogiava a rapidez do pensamento e o bom senso nas conversas. Seria seu sucessor sem que isso causasse qualquer dano...
Sorrira, fizera penitencia, e se sentira ainda mais só!
Gostava da casa assim silenciosa quando as amas se recolhiam aos labores da casa inferior e os homens saiam para a faia da tarde e ela podia, então, se recolher aos seus pensamentos e observar a curva do braço de terra perdida entre a lagoa e o mar.
O sol já era apenas um brilho na barra do horizonte e um gato grande e dengoso se desenhara nas nuvens sobre a ponta de terra. Dentre em pouco os jasmins começariam a aquecer a noite com seu perfume doce e cálido e não se distinguiria tão bem a trançagem que o bungueville trançara na paliçada do balcão. As águas também começavam a escurecer e logo as tranças prateadas da lua rastreariam a lagoa pelo mesmo caminho por onde o sol se escondera. Um cheiro forte abraçou o ar, um cheiro conhecido que vinha de longe, de algum lugar pertencente ao mundo terreno, um cheiro exigente ainda que agradável...
- Senhora!
_ Senhor D. Fernando! Boa noite, estimo que o dia tenha transcorrido na paz de N. Senhor.
- Assim foi. Porque chora? Sente algum incomodo? Quererá chamar o doutor?
- Não senhor, agradecida. Devem ser os calores primaveris. Coisas de Senhoras, o senhor entende...
Manhãs de Inverno
la luna – 07jun004
Não sei exatamente explicar este sentimento, mas as manhãs são tristes.
Sobremaneira tristes são as manhas de inverno, quando o sol tíbio luta por vencer a cortina de vapor que cobre a natureza e encobre os pés dos primeiros transeuntes do dias.
Quando alcanço a soleira da porta encontro, reverentes, todos os meus fantasmas, imagens de uma vida que não vivi por opção ou falta dela, prontos a acompanhar-me no trajeto matinal ao som dos primeiros gorjeios da manhã.
Sorriem-me alegres e perfilam-se às minhas costas com suas correntes enormes e barulhentas cantando serenatas ao amor perdido e as horas intermináveis que se estendem entre as sete e o meio-dia.
Apresso o passo, anseio por adentrar ao prédio fervilhante de gente, de vozes e movimento saltando do silencio amedrontador das ruas matinais: não adianta, colam-se a mim e não se desgrudam a menos que o palestrante seja eloqüente e envolva a minha mente em devaneios outros!
O sol do meio-dia é minha redenção. Sob seu calor protetivo situo-me no presente e, pés fincados a(à) realidade, posso prosseguir na faina diária sem fantasmas brancos de amores inacabados, crianças risonhas ou adolescentes sonhadoras de outrora, oportunidades perdidas, coisas partidas como cais de barcos à vela.
Não preciso salvar o mundo sob o sol do meio-dia, mas nas primícias matinais estes vestusos senhores cantam aos meus ouvidos tudo que desejei e sonhei, tudo que aprendi e jurei fazer.
As juras... Sombras adolescentes que voltam sempre como infinitos em torvelinhos, como fantasmas cambaleantes de algo para sempre perdido!
São tristes, definitivamente tristes as manhas de inverno!
Lembranças da Medina
la luna - 26jul04
Os corredores da Medina tinham personalidade própria. Eram um caleidoscópio cujas figuras modificavam-se a cada minuto e possuíam cores vivas e aromas exóticos. O sol conferia aos corredores estreitos uma mágica de luz e sombra que em lugar algum poderia ser vista igual.
As duas mulheres que conversavam à porta da loja de tinturas eram paradoxalmente semelhantes e distintas em seus aspectos particulares. Uma egípcia e uma moura, determinadas, decididas, firmes e aparentemente doces.
A egípcia e seu cabelo escandalosamente curto, tez morena e olhos negros, profundos. A moura possuía cabelos longos e brilhantes e em sua retina aveludada o traço negro da pupila mais parecia uma partícula suspensa em uma gota de mel.
- Não consigo entender, mas há espaços, regiões, singularidades da mente e do coração dele, que só você entende. São inacessíveis a mim, por mais que tente! Esse é um elo que ninguém pode romper.
Virou-se e partiu não dando tempo ou oportunidade para resposta...
Tantos anos haviam transcorrido e essas lembranças ainda voltavam junto com o aroma das camélias e dos jasmins noturnos e, quando isso acontecia, a visita das lembranças, era inevitável lançar o olhar através do balcão de ferro e vislumbrar a linha do horizonte distante.
Para além da bancada nada existia que não fosse a imensidão do oceano com as jangadas voltando do mar, os telhados vermelho-terracota e o extenso rio, em cuja alusão chamaram as margens de Rua da Praia.
Finalmente conseguira entender a dor que pressentira anos atrás. As palavras daquela mulher só agora faziam sentido... E essa compreensão aumentava a solidão do retiro das lembranças.
No horizonte não havia navios chegando, nem o som atordoado das medinas!
Inverno no Cerrado
la luna – 29jun004
Penso que o verão do cerrado é de uma exuberância tão contraditória quanto bela, ainda mais no cerrado cuja vegetação tem um comportamento peculiar.
As manhãs nebulosas e frias sucedem-se um dia tórrido e uma noite gélida onde a grama queimada e as árvores nuas de folhas contrastam com Ipês floridos em abundancia, ouro em penca e Papagaios rubros.
Pequenos sinos de amarelo vívido pontuam a grama falha nesta época seca onde tudo parece dormitar, menos as flores do Cerrado e suas formas exuberantes e quando a noite chega e o frio adensa o ar, o perfume forte dos lírios noturnos dão um tom de magia ao céu estrelado.
O inverno no Cerrado tem um quê de lição. A perseverança parece entremear cada pétala aberta no topo dos galhos dirigidos ao céu como mãos em prece, como oferendas vivas e vibrantes feita aos deuses de todos os tempos.
Por aqui a noite nuca cai abrupta, precede-a um barramento vermelho e lilás que faz da linha do horizonte um espetáculo a parte, verdadeiro pano de fundo para o bordado das flores que nascem deste solo seco e aparentemente morto.
O inverno com seu frio e aparência de sono morfético faz o cerrado explodir em vida como uma das mais paradoxais manifestações da natureza.
Estações
la luna-26maio005
A bem da verdade fora ela quem mudara!
O passar dos anos havia-lhe conferido uma tranqüilidade que a fazia olhar desassombradamente para todas as direções, entabulando um falar articulado, qualquer que fosse seu interlocutor.
Enquanto a chuva tamborilava uma velha canção no seu teto, as lembranças orquestravam uma sinfonia igualmente antiga na sua memória, fazendo desfilar, diante dos seus olhos, recortes de um tempo que já nem saberia precisar.
Aquele camafeu esculpido em lembranças era peça de um antiquário, há muito fechado, em que se concatenavam reminiscências.
Não mudara nada... A mesma tepidez aconchegante de um Noturno de Chopin, notas de um alegro de Mozart, combinadas à Primavera de Vivaldi, e uma elegância de fazer inveja a Liszt conferiam-lhe um porte nobre, quase principesco, e assim permanecera sem sentir o peso dos anos, o passar do tempo.
Quantos janeiros separavam-nos? Já nem se recordava mais e, no entanto, nada havia em que se pudesse basear para falar de tempos corridos. Sabe-se lá... talvez um pouco mais de manchas solares sobre a pele das mãos alvíssimas, nada que merecesse nota,também esta alergia à luz solar era antiga, parte do arsenal de lembranças que possuía!
A mesma capacidade de suster o tempo entre duas palavras, um semitom, retornando à realidade em velocidade alucinante, deixando escoar os segundos como areia entre os dedos. No ar a sensação que fora demasiado breve o intervalo...
Puxou as cobertas macias em torno do corpo, tentando prolongar a sensação de proteção e acalanto recém descoberta.
Na lareira, o crepitar da madeira beijada pelas chamas lembrava o seu coração: saracoteava como o de uma adolescente no seu primeiro encontro... A noite estava repleta de música e perfumes singulares. Adormeceu ouvindo uma canção que só ela conhecia!
Essência
La luna – 23jan005
Vives em mim como lembrança imorredoura das flores primaveris, carinho uterino de uma vida pulsante, existência certa do ar.
Vives em mim e minha alma floresce ao doce toque de tua vívida recordação como raios de sol que desabrocham a rosa dormente na manhã virginal e és a doçura do ocaso e a vermelhidão exuberante da alvorada litorânea!
Vives em mim! Mundo à parte onde me refugio das guerras diárias, das batalhas cotidianas travadas a cada inspiração, e a luz difusa e tênue de tua presença é a motriz que impulsiona meu espírito em frente.
O futuro é um vácuo incerto que suga meus sonhos prometendo o teu encontro e como vives em mim, intrinsecamente eu, não há como não me deixar tragar pelo abismo incerto e sem contornos chamado de esperança...
A dilaceração da perda ainda é uma dor presente, a derrocada final ainda doe nas paredes talhadas pela memória da vida explodindo em teus braços, acalanto de esperança que eu quisera cantar, trouxe-me a certeza de minha rendição: Eu não poderia dar-te vida, embora te houvesse entregado a própria essência dela!
Mas...Vives em mim como a busca que empreendi no passado, o objetivo a que persigo no presente, a meta a ser atingida no futuro. Vives em mim desde o tempo que tudo era uno e éramos a gota de orvalho infecunda pelo sol da manhã.
Vives em mm e assim será sempre, pois és eu mesma do outro lado da vida!
23 shavat 5765
Cena Cotidiana
la luna – 01jul 005
O homem era alto, espaldar largo, cabelos nos ombros. Não era jovem, tão pouco velho, tinha um olhar penetrante e um sorriso que era mais uma constrição dos lábios que propriamente um sorriso.Na verdade, sorria com os olhos, afunilando-os, deixando mostrar as marcas que o tempo desenhara a sua volta, como os olhos de um felino ao mirar a presa: duas fendas escuras, hipnóticas, profundas...
A mulher era miúda, branca, cabelos curtos, escuros. As roupas denotavam praticidade, objetividade, independência. O supercílio espesso dava conta de uma personalidade forte, mas o olhar distante falava de um mistério profundo a dormitar em sua alma.
Uma boneca de louça, um príncipe árabe e entre ambos uma mesa de toalha vermelha, um cachepô de begônias recém saídas da fogueira, pães, vinhos, pastas, um banquete cigano, uma música quente, e muitas luzes...Todos os ingredientes do improvável, do inusitado, do impossível.
Seus olhares se cruzaram na ante-sala da festa, ao meio do campo ainda mal iluminado e se reconheceram. Intercalaram-se, novamente, em plena festividade, incendiaram-se mutuamente, atraíram-se, não se tocaram, desejaram-se, penetraram-se, perceberam-se intensamente e através do ar rolaram chispas incandescentes de um querer profundo, fulminante.
Olharam-se tanto e tão intensamente, tão profunda e docemente, que imaginaram sentir em si o cheiro e o toque do outro: um intenso, quente, arrebatador; o outro envolvente, sedoso, sedutor. Fogo e poesia, um balé encantado na noite fria.
Os figurantes eram só figura, paisagem, personagens que pareciam irreais naquele cenário. Não pertenciam ao script, não estavam na estória, não perceberam o enredo mas delimitaram-no, como uma barragem que sem pertencer ao rio, fecha-lhe o fluxo.
Havia a mulher de rosa e fartos cabelos das tribos negras do norte e o homem de olhar de lince e rosto cândido, aquele que trajava preto, gestos nervosos...
A mulher-cerâmica deu as costas, abriu a porta, sorriu e sumiu na cortina de fumaça dos sonhos que se desvanecem, o príncipe árabe montou seu cavalo branco e partiu. A musica findou, a mesa de recolheu o fogo cessou e permaneceu na calada da noite o perfume das coisas que poderiam ter sido mas não foram!
Borboletas, bandolins e chocolate quente
la luna –13 jun005
Sentia-se assim, estranhamente só, como a lua nas madrugadas silenciosas e sem amantes que povoam os invernos .
Em sua mente existia uma imagem, o seu auto-retrato, uma virgem bela e vaporosa em alto mar, uma estátua em pleno vôo na amplitude silente do oceano, nem revolto e nem calmo, apenas alto mar!
Havia um grito, sempre preso, a meio caminho entre o coração e a garganta, balouçando-se como as águas imovelmente onduladas do mar alto...
O frio enregelava a alma, paralisava o tempo, o sangue, e o coração pesando toneladas seguia o comando árido do cérebro frio e seguia avante em seu tum-tum ritmado...Um soldado em guerra, sem querer, poder ou ser, apenas soldado, apenas cumprindo ordens, apenas batendo.
A vida era lâmina afiada: cortava nacos de sua alma e os pendurava ao sol inclemente da realidade. Esbravejava e criava um novo sonho, um novo alento, como se parisse a cada dia novos filhos para agarrar-se a eles e poder continuar vivendo, mas a vida vinha e os levava, um-a-um, todos partiam e, insistente, criava um novo, sem jamais desistir.
De tantos partos, partidos e repartidos entre si, criou um mundo seu, em cores e sons, uma realidade de valsas e bandolins, rosas nas janelas e pardais a esvoaçar flores. Chegava em casa e borboletas azuis brincavam com as rosas do jardim enquanto as cortinas brancas esvoaçavam pelo caixilho da janela.Um vento suave lhe beijava a face e falava tagarelices traquinas como uma caneca de leite quente com chocolate derretido...
Certa feita, em que a vida lhe roubara mais um sonho para estender ao sol do desespero, abriu a porta que separava o seu mundo do mundo dos demais, ultrapassou o umbral e jamais voltou. Ficou para sempre entre as flores e borboletas, ouvindo a canção do vento e tomando chocolate quente com chantily,deliciando-se com cerejas ao marasquino.
Do lado de cá houve choros e lamentações, por certo havia sofrido demais, a coitada, e jamais perceberam que se sofreu foi de solidão somente!