28 de mai. de 2006

O Mistério da Luz

Thamar


Nunca se soube ao certo como aquele raio de sol vencera as barreiras e inundara o quarto sempre frio com sua luz e calor. O fato é que isso aconteceu e, a princípio, causou medo e espanto.

Morava há tanto tempo naquela escuridão gélida que já se acostumara a olhar a claridade como algo pertencente ao mundo de fora, mundo que adivinhava existir a partir da algazarra de jovens e crianças existentes para lá dos portões.

Há quanto tempo estava ali? Não saberia dizer. Possivelmente toda a sua vida, pois se lembrava vagamente de haver visto um mundo diferente além do jardim.

Tudo aconteceu repentinamente, com o raio de sol atravessando a janela, afastando as cortinas e enchendo o aposento de uma luminosidade quente e forte. Sentiu medo — essa foi a primeira das reações — e deu as costas à luz, mas o sol não iria desistir de iluminar e aquecer aquele quarto. E dar as costas não adiantava em nada, nem mesmo minimizava o pânico. Então, correndo, trancou-se no guarda-roupas.

Lá, no guarda-roupas, era tudo familiar: a escuridão, o frio cheirando a mofo, o silêncio e a sensação de vazio... Aos poucos, a curiosidade venceu o medo e, pela fechadura, passou a observar o quarto iluminado: não era que as paredes eram rosa-salmão? Jurava que eram brancas... mas branco sempre é a falta de luz! E aquele calor gostoso que, mesmo no guarda-roupas, começava a sentir? Era estranho, mas fazia o coração disparar; sentia-se mais forte, mais vivaz.

Timidamente abriu uma, depois a outra porta do armário. Um pé de cada vez, saiu do seu esconderijo, como uma borboleta do casulo. A claridade, no começo, mas só no comecinho, doeu-lhe a vista, obrigando-a a espremer os olhos como quem acorda. Deixou-se envolver pela quietude cálida e chegou-se à janela para espiar lá fora.

A nova realidade era cheia de propostas e curiosidades, razão pela qual entreabriu a janela, a fim de melhor ouvir as crianças brincando. Foi nesse momento, exato momento, que o raio de sol tomou-a pela cintura e bailou pelo aposento. Parecia um tango argentino. Suspendeu-lhe o corpo acima do parapeito da janela e depositou na calçada, fora dos limites frios, onde sempre vivera.

À sua frente uma linda borboleta azul batia freneticamente as asas. Um ser diferente, ao menos para quem não conhecia borboletas, de asas azuis com pontinhos brancos, um sorriso maroto estendido entre uma antena e outra.

Deixou-se levar pelo raio de sol e pousar nas costas da borboleta. Voaram pelos céus do mundo, ou do que pretendia imaginá-lo: o que é o universo para quem nunca chegou nem aos portões do jardim?

Desceram pelo arco-íris e a risada alegre e solta assemelhava-se a cristais batendo contra dentes infantis. Beberam do cálice da vida e tomaram banho no rio da imensidão que faz as pessoas tornarem-se uma, nem que seja por alguns momentos.

Quando a lua assumiu a função de iluminar o céu, estranhou a janela aberta e as cortinas arregaçadas. Curiosa, entrou no aposento, primeiro cautelosa; depois enchendo-o com sua luz de prata. Encontraram-se: dormia com um sorriso infantil.

19 de mai. de 2006



Sobre vales e montanhas

Thamar

19mai006

Executo uma quinta em “meia-ponta” e a panturrilha tensionada eleva-me no solo enquanto as mãos tentam alcançar o céu. Tudo que consigo é tocar seu rosto com a ponta dos dedos. Desisto do feito e sorrio.

Sua imagem não se encontra na linha do horizonte e nem mais acima. Está perto das estrelas, onde um fim de tarde envolve-me em profunda paz.

Assentada sobre colunas jônicas, encaixo-me na amplitude de sua envergadura. Pequena pérola encaixada na ostra. Imagem divertida que me ocorre: poderia desaparecer na dobradura do seu dorso! Invadem-me os aromas do outono e o cheiro suculento da fruta madura confunde-se com os jasmins espreguiçados ao sol, enquanto pétalas de rosas inundam minha boca, meu rosto, escorrem pelo meu colo.

Há uma paz profunda firmada na segurança dos grandes silêncios. Silêncios plenos de procuras e descobertas, vida pulsando no latejar do Universo.

Uma outra imagem desagua no cérebro: o vale observando a montanha, percebendo seu perfume e firmeza, sua postura protetora e suave.

A realidade tem a força de uma draga e o tempo continua sua marcha inexorável.

Meus pés tocam a terra dos homens mas minha alma permanece ancorada na simplicidade forte do seu abraço. Capa de frio na noite invernal!

13 de mai. de 2006

Gerânios

6mai006

Thamar

Acostumara-se ao silêncio como quem se acostuma a uma doença crônica, progressiva, terminal. Um silêncio repleto de vozes e pensamentos, pulsações de tudo que poderia ter sido e não foi.

No começo sentira-se definhar como uma planta sem água, sem luz, aos poucos decidira-se pela vida e suas raízes aprofundaram-se no solo em busca do precioso líquido. E quanto mais suas raízes desciam escavando o solo profundo, mais seus galhos fortaleciam-se em busca do sol.

Vivia de um quase nada, sustentava-se do sonho que lhe presenteava a lua a cada noite, gostas de orvalho vicejante na madrugada.

Um dia tocou a água escondida no solo profundo e assustou-se com a imensidão do azul do céu.Tudo, repentinamente, parecia apoteótico, festivo, enorme... Ressabiada, olhou em volta e o canteiro continuava estreito, silencioso, mas o jardim era enorme, embora jamais se houvesse apercebido.

Derramou-se preguiçosa pelos muros permitindo que a vida instalasse flores em seus galhos, que a raiz buscasse a água tão necessária e , faminta, recebeu a lua com seus raios de sonho e fantasia.

Aprendeu a ouvir os pássaros e cantou a canção da vida desenhando um bordado de fugaz felicidade!

Mistérios D’água

6mai006

Thamar

Há coisas para as quais não há explicação, ao menos aparentemente. Um dia de sol, uma manhã chuvosa, notícias de um jornal velho que voa pela calçada ou palavras ouvidas ao acaso, tudo são possibilidades que podem mudar a vida de uma pessoa.

Possivelmente era verão; lembrava-se, ao menos, de um calor intenso e da suave brisa que soprava. Quando se anda no deserto por tanto tempo, perde-se a noção dos dias, do clima e da finitude.

No deserto tudo é imenso, belo e sem vida. Nada, além da areia, muda de lugar: nem o calor, nem o sol, nem o horizonte e fora exatamente isso o que lhe chamara a atenção: a brisa era um componente novo e o inusitado de sua presença assustava, quebrando a mesmice da paisagem.

Dias depois viu o oásis e a sombra acolhedora de suas palmeiras, tâmaras frescas e água da fonte assemelhavam-se a um delírio, privação de sentidos pelo cansaço da viagem.

Despiu-se sem pudor – como todos que se sabem sós –, lavou a face e mergulhou os pés cansados na água fresca. Sentiu a vida voltar às veias e quando a noite chegou, o céu, repleto de estrelas, sussurou-lhe o mistério do infinito que se opõe a fugacidade da vida, entendendo que as paisagens estão primeiro na alma e depois nos olhos, levando tempo para tornarem-se caminho.

Aprendeu a canção da roldana trazendo água para o menino e do mar quebrando na praia.

Adormeceu sorrindo.

Repentinamente entendera que o deserto era apenas a paisagem de uma parte do universo!

5 de mai. de 2006

Ave Maria, grazia plena!

15abr006

Thamar

O tempo passou sem que sentíssemos. Trouxe-nos alguns cabelos brancos a mais, juntou marcas de expressão e mais algumas assinaturas na alvura da pele. Desmanchou sonhos plantando outros, semeou sorrisos enquanto destruiu projetos; silenciou a gargalhada, ensinou a reflexão.

Houve aqueles arrancados de nossa companhia, prematuramente ou não, e houve aqueles que se ajuntaram a nós na marcha incessante da vida. Tanta coisa muda que se torna impossível precisar, marcar com determinada certeza os acentos do tempo, uma coisa, no entanto, não mudou e nem vai mudar: a estranheza do homem frente ao mar; meu estarrecimento diante da sua grandeza.

Uma grandeza silenciosa como a das grandes montanhas, um ensurdecedor barulho de borboletas voando no céu azul de uma manhã de verão, o trovão no meio da noite e a curiosidade respeitosa do peregrino no meio da noite, no centro do deserto, no umbral do nada, no meio do mar revolto.

Sempre em sua presença me calo e a sua figura suavemente austera lembra o título de um romance jamais lido: Pequenina diante de Ti .Repentinamente emudecida, o tempo recrudesce e, paralisada, sou o aborígine diante do mar, o errante sob o céu estrelado, a muda interrogação do cientista...

Todas as palavras imediatamente tornam-se sem significado, idiotas demais para serem ditas e o silêncio constrangedoramente me parece a única postura a ser tomada no momento.

Curvo-me respeitosa e me retiro, nada há que possa ser feito, há muito perdemos o direito ao paraíso e às estrelas cabe-nos tão somente admirar.

A lua de Eostre corre nos céus da redenção, Ave Maria, graccia plena!

...

Thamar

24abr006

Não ouvi o apito do trem!

No varal, as tranças brancas voam maculadas de sangue

O chão encharcado com o grito contido

rasga a lágrima calada

Há um nada, um vazio repleto de imagens

Uma canção, uma valsa não dançada

Paris e as palavras silenciadas

no estrondo do metal...

As águas da barragem refletem o céu estrelado

Na profundeza das águas o silêncio do nada

o turbilhão confuso dos reflexos difusos, desencontrados

Tudo gira rapidamente

as tranças voam no varal,

o vento açoita o final da tarde

o ocaso rasga o céu , mas o vermelho não é de paixão

Um ponto e tudo acaba...

Nada!