22 de jul. de 2006

Ilkar

Thamar


Quando pensava em sua vida tantas e tantas vezes recomeçada, assombrava-se que houvesse resolvido continuar naquele exato momento em que todos os caminhos pareciam bifurcar-se a exigir uma decisão mais que definitiva: terminativa!

Naquele dia ensolarado resolvera prosseguir mesmo que não visse um caminho a frente. Abriria um, passaria sobre todos os obstáculos, haveria, sim, em algum lugar, um atalho, um acesso a um tipo de vida normal, sem constantes recomeço e estava certa:havia, sim!

Instalara-se na pequena aldeia , ao sul do califado das laranjeiras, e firmara-se no comércio de especiarias. Começara com pequenos truques perfumados, essências florais para mulheres, banhos de cheiro e aromas, e agora vendia todo tipo de sonho.

Vendera tantos sonhos em formas de perfumes ou talismãs que acabara comprando um para si, quase sem perceber. Tudo acontecera naquele dia de outono, quando o cheiro das frutas maduras enchia o ar, em que amofinada pela falta de um sol fervente fechara o comércio e resolvera passear na casa dos amigos.

Na esquina dos beirais, na rua onde aconteceram os passados combates, encontrou o grande general, e o cumprimentou gentil e formalmente.

Há muitos anos, logo que chegara à aldeia, fora fornecedora do general. Trouxera-lhe papiros, bicos-de-pena e todas essas coisas com as quais os homens movimentam o mundo. Não lhe passara pela cabeça que alguém tão importante pudesse lembrar-se dela, simples comerciante de aldeia.

Ilkar sorrira, mais que um sorriso formal, e lhe convidara para uma chávena de hortelã aromatizado. Ele possuía lembranças firmes a seu respeito e de suas mercadorias. Conversaram longamente até serem obrigados a atender ao toque de recolher.

Certa feita, era inverno, surpreendeu-se com uma imagem que lhe ocupou, de uma só vez, todo o espaço do umbral. Uma cabeça bem torneada teve que dobrar-se para não tocar o batente da porta enquanto ombros largos ocuparam todo o vão de passagem. Trajava camisa verde-água e calça chumbo. Lembrava o mar da Sicília nas tardes que antecedem o inverno e foi exatamente isso que lhe veio à mente: o mar da Sicília invadira seu estabelecimento!

Depois só lembrava de ter perdido a respiração ao ser afogada em delicadas pétalas de rosas , sentindo uma suave e firme pressão no meio das costas.

A terra estremecia ao som dos tambores de Beltrane. As fogueiras rituais crepitavam por toda a ilha enquanto virgens, engalanadas com as mais belas flores da estação, pulavam os círculos de fogo ao encontro do rei verde.

Os homens hipnotizados, e as mulheres em êxtase, clamavam pela volta do sol saudando a fertilidade do solo e o recomeço da vida.

Tudo possuía o mesmo ritmo: o ventre da mãe terra, os corpos dos homens, os tambores rituais. Tudo pulsava no compasso da vida que se renova, recomeça com a pujança dos nascimentos.

A roda da vida girava freneticamente e o peso morno de um corpo relaxado reinstalou a realidade. Sim, era Beltrane, mas o ritual era particular, só seu, vôo solo de uma alma solitária em terra estranha.

Sorriu enquanto mãos carinhosas desenhavam o contorno de seu corpo. Recebeu a taça de vinho que lhe foi estendida, como as vestais recebiam as infusões restauradoras.

Deixou-se envolver pela acariciante sensação de aconchego e plenitude.

Pela janela aberta, um vento brincalhão e f rio tamborilou nos seus ombros seminus. Abriu os olhos demorando a encontrar a realidade. Ao seu lado havia apenas o vazio das cobertas macias e no ar o perfume doce e aconchegante de um momento de carinho.

Deslizou as mãos pelos braços, arrumou os cabelos lentamente. Sentiu na pele o cheiro gostoso da terra molhada e aquecida pelo sol, o cheiro do sol...

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